Por Doris Pinheiro
No período do Brasil colonial e escravista, os africanos que chegaram como escravos não podiam cultuar suas divindades livremente. A religião oficial do país era o catolicismo. Inteligentemente, começaram então a associar suas divindades com os santos católicos para poderem exercer sua fé, ainda que disfarçadamente. Buscaram então semelhanças…
Assim, Oxalá, filho de Olorum (Deus Supremo). foi “sincretizado” com Jesus Cristo, Senhor do Bonfim, filho de Deus. Na África Oxalá habitava um monte. Em Salvador Senhor do Bonfim habita a Colina Sagrada…
Numa festa como a Lavagem do Bonfim onde milhares de pessoas vão às ruas em louvor ao Senhor do Bonfim, mas também a Oxalá , isto que pode parecer aos menos acostumados uma espécie de “confusão mística”. Para muitos o nome é sincretismo. Mas na verdade não é correto dizer isso.
Sincretismo, por definição, é a fusão de diferentes doutrinas para a formação de uma nova, seja de caráter filosófico, cultural ou religioso. Pense bem ? É isso que acontece numa festa como a Lavagem do Bonfim ?
Antropólogo, historiador, jornalista, estudioso dos Orixás, irmandades religiosas, religiões afro-brasileiras, música popular e literatura no Brasil, Marlon Marcos é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia – UFBA e professor Adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira .
Ele concedeu entrevista para falar sobre o que se consagrou como sincretismo, para que se possa entender melhor o que realmente acontece na Bahia.
Doris PInheiro – As pessoas falam sempre de sincretismo religioso quando se deparam com uma celebração como a festa de Santa Bárbara ou a Lavagem do Bonfim, mas não é sincretismo… Se fala em paralelismo, dupla pertença… Para vc o que é este fenômeno tão baiano ?
Marlon Marcos – Isso mexe com o imaginário das pessoas que acreditam e vivenciam a festa. Se formos pensar do ponto de vista antropológico, existem várias categorizações. Sincretismo é uma palavra perigosa para se avaliar antropologicamente, mas aqui houve um encontro de culturas africanas e europeias nesse cenário complexo que é a Bahia. As pessoas querem separar politicamente Senhor do Bonfim e Oxalá, mas na fé, no dia a dia, as pessoas praticam isso, é que chamamos de dupla pertença: é você pertencer ao candomblé, mas “se sentir católico” ou aceitar o catolicismo – ou você é católico e tem a abertura para entender o candomblé e religiões de matrizes africanas. Resumidamente, de um lado tem o Senhor do Bonfim e do outro, Oxalá, e esses dois santos convivem diariamente – as pessoas podem pertencer às duas coisas ao mesmo tempo.
Porque Senhor do Bonfim foi “sincretizado” com Oxalá ?
MM – Graças aos Orixás, os negros encontraram formas de vencer a dureza, a desumanidade da escravidão. Os negros não tinham direito de cultuar sua crença, sua fé, porque era considerada algo selvagem, desumano. Por isso, associar Senhor do Bonfim a Oxalá foi uma forma estratégica de fazer com que as religiões de matrizes africanas sobrevivessem em território brasileiro.
Como os negros ao chegar na condição de escravos no Brasil estabeleceram estratégias de resistência para poder professar sua fé ?
MM – Os negros foram escravizados e o escravo se tornou “coisa”. A ideia era manter a sua integridade como ser humano, se manter vivo. Uma das formas fundamentais para resistir à escravidão foi a criação dos quilombos. Mais à frente, para fora dos quilombos, outro grande evento de resistência para vencer a escravidão foi a ressignificação familiar através dos terreiros de candomblé.
E acabou dando no que ? Qual o papel desta característica da religiosidade baiana na formação da nossa identidade como povo ?
MM – As religiões negras, as afrobrasileiras, civilizaram o Brasil e, fundamentalmente, civilizaram a Bahia. Em tudo, na música, na forma que temos de nos expressar, de nos alimentar…Percebemos então o quanto somos indígenas e negros.
5 – O que é importante aprender com uma celebração como a Lavagem do Bonfim ?
MM – A gente renasce, passamos por um processo de purificação e nos alimentamos de fé. Essa ideia de vestir branco é alcançar a paz e estar em contato com o que há de mais simples. Caminhar até a igreja, jogar água de cheiro, embelezar o ambiente com flores; tudo isso é muito lindo, é estar no início da vida, no mais simples, puro, no mais limpo. Todo ano Salvador renasce através das água de Oxalá, da Lavagem do Bonfim, que é uma forma de ingressar, de fato, no novo ano. O povo renasce em frente a igreja pedindo paz e proteção. A festa imprime essa ideia de purificação.
Quem é Oxalá
Oxalá é o primeiro orixá criado por Olorum (Deus Supremo). Ele também é conhecido pelos nomes de Orixalá e Obatalá. A missão de Oxalá foi criar o mundo. Segundo as lendas, ele é o pai de todos os Orixás. Portanto, está acima de todos na hierarquia divina. É o Rei da Roupa Branca ou, ainda, o Grande Orixá é o mais importante dos deuses Yorubá. Seus adeptos usam colares de contas brancas e vestem-se, igualmente, de branco. Sexta-feira é o dia da semana que lhe é consagrado. Sua saudação é Axé Babá! Ou Epa Babá!
Ele se apresenta em duas formas – jovem e velho, e reina sobre os Orixás e os homens. Como Oxaguiã, forma, jovem ele é vigoroso e nobre. Sua dança é guerreira. Como Oxalufã, forma velha, é sábio bondoso, patrono da fecundidade, da procriação, deus purificador através da água doce de fonte. Sua dança é lenta com o Orixá curvado pelo tempo encerrando o cortejo dos orixás.
Pai dos homens, criador da humanidade, Oxalá é o pai de todos. Muito sábio e benevolente com os filhos, ele os leva pelos caminhos da vitória. Ele é regente do Trono da Fé, ou seja, está associado a todos os assuntos que envolvam a esperança e a confiança em Deus.
Histórias de Oxalá
Oxalá é o Orixá mais velho, filho de Olorum, e foi a ele que seu pai confiou o saco de criação, para que pudesse criar o mundo. Mas, como todo Orixá, Oxalá deveria seguir alguns procedimentos para fazer o ritual de criação. Ele, muito altivo e presunçoso, recusou-se a fazer uma grande oferenda, achando que por ser o Orixá mais velho isto não era necessário. Exú – o responsável por fiscalizar a entrada do mundo do Além – não gostou nem um pouco da falta de respeito de Oxalá, e quando ele passou pelo local o fez sentir uma grande sede que o obrigou a furar uma palmeira com o seu Opaxorô.
Um líquido vermelho e delicioso começou a sair da árvore e Oxalá o bebeu até se embebedar e adormecer, o que ele não sabia é que esta bebida era vinho de palma. Enquanto dormia, seu irmão e maior rival Oduduá passou por ele e roubou o saco da criação, o levando até Olorum e contando o que aconteceu com Oxalá. Olorum então permitiu que Oduduá criasse o mundo. Assim, fez toda a oferenda e a primeira cidade a surgir foi Ifé, e Oduduá tornou-se seu rei.
Ao acordar, Oxalá indignado por não estar com o saco da criação foi falar com Olorum, como castigo ele foi punido a nunca mais poder beber vinho de palma e nem usar azeite de dendê. Mas, tocado pela frustração de Oxalá, permitiu como consolo que ele criasse o homem a partir do barro, onde Olorum sopraria a vida. Oxalá se empenhou na tarefa, mas não acatou todas as ordens do seu pai, e bebia escondido o vinho de palma. Por isso algumas pessoas nascem com deficiências físicas ou albinas por não ficarem no forno de Oxalá o tempo certo para cozinhar.
Oxalá decidiu visitar seu filho Xangô, Ifá o alertou que ele correria riscos durante a viagem e para que levasse consigo 3 roupas limpas, sabão, ori e que não brigasse com ninguém no caminho. Logo no início do caminho ele se encontrou com Exu Elepo, que o sujou de dendê quando o abraçou, lembrando do conselho ele se acalmou, tomou banho e trocou de roupas a despachando com o ori. Mais a frente Exu Eledu cruzou o seu caminho o sujando de carvão, e por último Exu Aladi o sujou com óleo de caroço de dendê, mas ele não se limpou. No caminho ele viu um cavalo que havia dado de presente para Xangô e ao chegar perto os guardas acharam que ele era um ladrão e o prenderam. No período em cárcere de 7 anos, o mundo sofreu muito, secas surgiram, mulheres não conseguiam engravidar, então Ifá alertou Xangô de que algum inocente estava preso. Ao revistar as celas, Xangô encontrou seu pai e o libertou.
Oxalá X Exú
Oxalá e Exú vivem se atacando, em uma reunião com os Orixás Oxalá deu um tapa muito forte no rival, que caiu longe e todo machucado, mas no instante em que se levantou ele já estava curado. Não satisfeito, ele bateu em sua cabeça, deixando Exú anão, mas o mesmo se balançou e voltou ao normal. Inconformado Oxalá pegou-o pela cabeça e o chacoalhou, deixando a cabeça dele gigantesca.
Ao soltá-lo, Exú passou a mão na cabeça e ela voltou ao estado normal no mesmo instante. A disputa dos dois continuou até que quando o Exú se irritou e tirou de dentro de sua cabeça uma cabacinha, e soltou uma fumaça branca sobre Oxalá, que perdeu toda sua cor. O Orixá então começou a se esfregar como Exú fazia, mas não conseguiu retornar ao normal. Oxalá arrancou de si o próprio Axé e o soprou sobre Exú, que com isso ficou pacífico, e deu a cabacinha mágica para Oxalá (que passou assim a ter domínio para a criação do branco).