“O homem que dorme, mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos”. No Caminho de Swann.
Dormiu sobre os sonhos, as cinzas dos cigarros na recusa, o belo vestido de Denise, o pescoço oblongo, os olhos grandes, a devassa sobrancelha e os superlativos formaram um rápido, mas consistente, conluio. Até o relógio alcançar 11 horas da noite, haveria espaço suficiente para observar as impertinências que aborreciam e o faziam colar os lábios, franzir a testa, colocando Denise fora do lugar habitual, salada de pepinos, agrião e queijo Bavária Blue.
Por uns momentos se esquecia dos sonhos, esticava as pernas, descansava a cabeça no braço direito, revia os dólares empregados na petrolífera, um presente do amigo Marcelo; terno branco, folgado, mão no bolso, a admirar as parreiras e Denise, descalça, conferindo se os pés permaneciam no abrigo da convivência, na companhia dos dedos, irrequietos e inúteis. Pulsavam, com ou sem permisso, não guardavam inveja, nem proporção, nem se aborreciam de ocupar o lugar de baixo, só os cascos dos cavalos eram imponentes, mas tinham serventia no coice ou na sustentação do cavaleiro. Os dedos, sopesava Denise, só eram lembrados porque as unhas impunham o ritual do corte; o desastre sempre estava à espreita, na aposta da incompetência da tesoura; como os laços dos cadarços, distraidamente se desfazem, obrigando o emprego de novos esforços, interrompendo a caminhada, a embrulhar dúvidas.
“Será que está correto, hoje é um dia de sorte? Posso me atrasar? O suor já desponta, o cabelo saiu da posição, não há espelho, pente, e se notar a inquietude, retirar o cigarro da bolsa, lançar fumaça aos vãos e o silêncio daqueles segundos me transformar numa barata”. Acontecimentos e aborrecimentos têm a mesma latitude, molestus.
O pulso, sim, exibe o Cartier, anatou Denise, não há músculo, mas a grandiosidade é uma constância, nunca se apaga, manuscrito de autoridade e sobremaneira de fazer o necessário, nem sempre na hora exigida; et por cause. “Abotoou Medina, de modo firme e seguro, pelos pulsos, e desferiu bofetadas, sólidas, como caixão de defunto”
Alfredo trocou de braço, assistiu o esquerdo e lembrou-se que sonhos trazem presságios, “e alguém termina conquistando algo fora do alcance, mas também se ferra, o prejuízo bate à porta, até o ascensorista olha como se o tivesse vendo pela última vez. Vou ser despedido? É preciso ter cuidado com os sonhos, ou basta alguém para dizer bons sonhos”?
Sonhar dispensa a ambulância? Médicos céticos concordam, e esculpem no jazigo do paciente todas as instruções para um sono saudável, as observâncias e os métodos para ter sonhos que não venham requisitar a ambulância, destinada a transportar doentes, acometidos de moléstias, algumas na impossibilidade de anotação, outras que seguiram de mãos dadas com o homem, se encantaram com o ônibus; afinal, depois da sopa e das cervejas, porque permanecer no mercado?
Refutou os médicos, sonhara tenazmente e de manhã telefonou com voz firme a solicitar ambulância. Do outro lado, alguém quis saber o motivo e ouviu um ríspido “dormi, sonhei mal, as têmporas estão suadas, impossível decifrar, já tentei ir para frente, dar meia volta, inteira, outra vez, sem nenhuma ranhura ao mal-estar”.
Faz algum tempo, Carla se esqueceu de contar-lhe, mas contou, “certa vez sonhei que tinha sido a última a chegar ao velório de Daniel, mas ainda não havia ninguém”, ficou com medo que os primeiros poderiam não entrar, por estarem fora da fila, mas confiante na perspicácia e na capacidade de enganar de forma sólida científica e inexpugnável o sonho anunciador, aquele produzido dada a proximidade de Humberto (mora no 702), ou ao fato de estar endividada e acordar com “os números famosos e falsos ou casca de banana”.
Alfredo sonhou duas, três vezes, uma, e se desfez das outras. Foi em sequência, como nos filmes? Só terminam no fim, poderiam fazer uma pausa, contribuir para o beijo escorregar as mãos, sem apresentar recibo ou escrituração de garantia, se estavam dispostas a bisbilhotar, porque haveria de ceder juras? Correriam o risco de ficar injuriados? Na cena da mocinha, bem maquiada, cabelo de salão de beleza, decote; no exato momento, o filme nem tremeu; o botão abriu e se fechou repentinamente, não houve tempo, engoliu a saliva, a contragosto.
Nos filmes cabem diversas cenas, não deveria, intrometidas, não aprenderam a se comportar, se trata de um sonho e não devaneio, cabe pontuação, observação, prudência, o emprego de superstições, afinal a terra é redonda, mas nem sempre foi assim. Porque os sonhos seriam dotados de clareza suficiente para reconfortar Alfredo Torres de Amaral, ou magoá-lo?
Recordou a tempo que “a noite pouco importa”, se de dia, o didatismo de Denise prova a certeza, ao abrir a porta do quarto e escrutinar com audácia, receios descabidos e a curiosidade, “nem sequer dormiu em casa”, teria chegado o momento de marteladas na testa, espatifar o abajur na cabeça, veda-lhe para sempre, “o escoteirismo sem-vergonha”.
Pensou em cantar uma música, inteligência de melhor eficácia, frente joias e presentes recebidos com sorriso e logo enferrujado, na desconfiança. E se contasse uma história, ou confissão, ou relato, a inspirar veracidade, dessas que abrem dúvidas, mas acalentam e instigam a imaginação alheia. Sentado no sofá macio, esteticamente comportado; o corpo e a medida agradecem, a sensatez, afinal, um tamborete é insuportável, quase um castigo, imprime apressadamente veredito, deplorável.
Afinal, se a casa recebia convidados, visitas, por certo não se cercaria de um banco. Era uma casa ou um estábulo? Ideias, conselhos, pedidos, empréstimos, seios deslumbrantes, amantes, traições, adivinhações carentes de provas, mas suficientes para alcançar a Graça à espera da vela quente ou da aquosidade dos lábios apressados; gulosos? Esto sólo es posible en un escenario, de lo contrario se contradice.
Alfredo Torres de Amaral não se comportava como os manequins, mas os apreciava na disposição para o trabalho sem barulho, expediam cortesia e se abstinham do sonho. Uma conclusão apressada, como tantas outras, mas impregnada de convencimento, sempre adotado, por patrões e empregados. Uma penitência régia.
Alfredo na descontração
– Olá, como vai você?
– Passou o dia na paz, se sim, posso perguntar, onde encontrou?
– Ah! Recebeu de presente
– O movimento aqui na loja está fraco
– Você tem sorte, pode escolher a cama onde dorme, estou horas na mesma posição e nem recebo um cachorro quente. Talvez não seja adequado.
– Sequer alguém me beija
– Talvez porque eu não contribua para a paz e sim para o enriquecimento da empresa
– Ouvi dizer que quanto maior o número de empresas maior a paz se torna
– Será?
– Se fico mais graciosa, as pessoas dobram a compra. Isto é bom para a empresa, mas, e meu cachorro quente?
– Não combina com os consumidores ou com a paz?
– Ok, mas prefiro o cachorro quente a paz
– Para afastar a dúvida. Confirmo. Prefiro o cachorro. É sempre quente, não há escolha. Merda.