Por Gerson Brasil
Faz tempo. Li, não me recordo onde, que Paul Valéry tinha um ar de inteligente; o comentário também mostrava o autor de Monsieur Teste sentado numa cadeira, e de óculos, parecia olhar o mundo sem medo e sem perspectiva. O personagem que criara estava voltado para a reflexão rigorosa, imaginativa e criadora, sem nenhum compromisso de tornar-se um modelo ou de empreender um gosto literário: “preferir a mim mesmo, na “hesitação entre o som e sentido. O que chamam de homem superior é um homem que se enganou”.
Valéry procurava explorar o que o linguista russo Roman Jakobson chamava de a função poética da linguagem, o texto estético, sem preocupação com o sentido. O escritor francês abraçou a literatura como se fosse o mundo e se queixava que não haviam palavras suficientes para sustentá-lo.
Mesmo com a enxurrada dos textos de dez linhas nas chamadas redes sociais, a literatura prossegue, no grande texto, a encontrar Dante (‘No meio do caminho em nossa vida, eu me encontrei numa selva escura’) e Drummond (‘No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, nunca me esquecerei desse acontecimento, na vida das minhas retinas tão fatigadas’. Outros lhes fazem companhia. Já haviam as pegadas de Gabriel Garcia Márquez em Carpentier no ‘Século das Luzes’. “O adolescente olhava a cidade, estranhamente parecida, a esta hora de reverberações e sombras bastas, a um gigantesco lampadário”.
A literatura é capaz de dar a volta ao mundo dentro de um quarto, ou a ‘Volta ao Mundo em 80 minutos’ e ainda ensinar ao leitor ‘Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo’ e ‘Instruções para subir uma escada’.
Embora possamos aprender essas coisas na forma de manual, devido a ênfase, faz algum tempo, colocada no mundo da tecnologia, como uma espécie de deísmo, ainda há gente, como Kwame Anthony Appiah, que cultiva uma biblioteca no jardim de casa.
Colunistas do New York Time e professor de filosofia da Universidade de Nova Iorque, pode não ter o ar intelectual de Valéry, mas escreveu no NYT na edição do dia 15, na última quarta-feira, um artigo cujo título é: “Posso proibir livros da minha pequena biblioteca gratuita no jardim da frente”? No escrito, mostra que a literatura pode ser tomada em qualquer lugar sem a menor restrição. Revela que outras pessoas estão se voltando para a mesma atitude, e de como é importante as bibliotecas e como elas estão bem acima de qualquer ação política para proibir esse ou aquele livro, mesmos os destinados às crianças. Algumas pessoas deixam livros na pequena biblioteca de Kwame que os politicamente corretos não aceitam, como aqueles envolvendo o criacionismo – o mundo é a criação de um agente sobrenatural e não a ideia de Darwin, de que os seres vivos descendem de um ancestral em comum.
Appiah defende os livros, seja qual for, argumentando que o aprendizado não se faz com restrições e sim por descobertas e isso se dá ao longo da vida, do conhecimento. É tão fascinante ler a Bíblia, como as Metamorfoses de Ovídio.
“Sou a favor de uma abordagem relativamente permissiva. As crianças são educadas adequadamente quando estão cientes de uma ampla gama de visões, incluindo, à medida que crescem, visões com as quais seus pais discordam. Aprender a avaliar ideias é uma preparação para a liberdade adulta. Os adultos, por sua vez, têm o direito de fazer suas próprias escolhas sobre o que ler. Essa é uma maneira pela qual os adultos exercem sua liberdade”.
No cuidar da biblioteca, o professor ‘cura’ a caixa da biblioteca “pelo menos uma vez por semana para ter certeza de que ela esteja bem abastecida com livros para várias idades e interesses: ficção, não ficção, poesia, livros de receitas, bebês, livros de histórias, literatura jovem adulta, etc. Se um livro fica muito tempo na caixa, eu o revejo para um momento posterior ou o envio para outra LFL ou para a biblioteca pública”. É uma iniciativa bem afastada do mundo do corpo como alavanca dos empreendimentos e bem distante do que deve e não deve ser lido, ou o que deve circular e o que não deve circular na sociedade. Não é a foice, nem o sopro, que vai desviar a palavra para o caminho certo. E qual o caminho? Só se for o das bibliotecas